Habitantes precisam enxergar o solo na paisagem urbana

Enxergar o solo apenas como um componente na produção de alimentos, fibras e combustíveis vegetais, é limitar a importância desse recurso natural para a vida. Assim como na paisagem rural, no espaço urbano, o solo desempenha importantes funções afetando a qualidade de vida nas cidades.

Os solos urbanos geralmente passam despercebidos. Predominantemente são afetados pela construção civil, mas desempenham várias funções, como, produção de frutas e hortaliças; arborização e ajardinamento; descarte de resíduos; armazenamento e filtragem de água da chuva; suporte para as obras civis; e reservatório arqueológico. Para que o solo desempenhe essas funções é necessário um planejamento adequado no processo de urbanização.

O termo solo urbano é utilizado para definir os solos presentes no meio urbano, seja antrópico ou natural. Já o termo solo antrópico refere-se a solos intensivamente modificados pelo ser humano tanto na agricultura quanto nas atividades urbano-industriais.

Os solos de ambientes naturais, os que não sofreram ação antrópica, logicamente irão desempenhar melhor as suas funções. No entanto, mesmo com propriedades alteradas e ou comprometidas, solos do meio rural e do meio urbano, desempenham funcionalidades importantes e semelhantes às do ambiente natural.

Entender a relevância do componente solo para o funcionamento da vida na terra passou a ser um dos principais desafios contemporâneos. É urgente refletir sobre o papel dos solos urbanos a fim de diminuir os efeitos negativos sobre este componente, provocados pela forte expansão urbana, muitas vezes desordenada.

Diferentes profissionais têm dirigido a atenção para o estudo do solo, no sentido de minimizar sua degradação, além de possibilitar, nos habitantes das cidades, o desenvolvimento dos sentimentos de valorização, cuidado e respeito com os solos urbanos, inclusive, despertando-os para a necessidade de criação e implementação de políticas públicas efetivas.

Olhando por esse viés surgem importantes movimentos ligados às escolas, universidades, organizações públicas ou não governamentais, comunidades e municípios que buscam trazer de volta a importância socioeconômica, ambiental e cultural dos solos. Neste sentido, diminuir os efeitos negativos provocados pela urbanização depende de ações que permeiam por várias áreas da ciência do solo.

 

Soluções baseadas na Natureza minimizam problemas

Várias espécies podem ser usadas nas paredes e telhados verdes para aumentar a biodiversidade, diminuir o calor, capturar carbono e trazer beleza paisagística.

 

“As cidades são um ambiente totalmente artificial. A gente pavimenta, perfura, cava túneis, mexe com a drenagem, canaliza rios, enfim, alteramos profundamente os solos e isso compromete as suas funcionalidades, resultando em problemas relacionados à degradação ambiental e a qualidade de vida da população”, afirma Betina Ortiz Bruel, doutoranda em Sustentabilidade Ambiental Urbana da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR) em Curitiba e vice-presidente da Associação dos Protetores de Áreas Verdes do Paraná (Apave).

Com o objetivo de tentar minimizar os problemas que ocorrem nos ambientes urbano, a pesquisadora propõe o uso das Soluções baseadas na Natureza (SbN), mas lembrando, que nem sempre as técnicas envolvendo o conceito de SbN, ou seja, a promoção de múltiplos benefícios para a sociedade e o aumento da biodiversidade, são as mais viáveis do ponto de vista econômico.

“A gente sabe que Curitiba, por exemplo, é cortada por vários rios, muitos invisíveis para nós porque estão canalizados. Neste caso, a solução seria a renaturalização dos rios, mas isso envolve uma grande intervenção em uma cidade que já está pavimentada”, exemplifica.

“Muito asfalto e muito concreto transformam as cidades em ilhas de calor provocando picos de alta temperatura. Um projeto de arborização urbana, com árvores nativas e porte adequado, além de aumentar a biodiversidade, minimiza o calor das cidades. A arborização também promove o sequestro de carbono, auxiliando assim na mitigação do efeito estufa”, afirma Betina.

Dentro das Soluções baseadas na Natureza, a pesquisadora cita ainda os telhados e paredes verdes. Várias espécies vegetais podem ser usadas para diminuir o calor, capturar carbono, trazer beleza paisagística, aumentar a biodiversidade e, ao mesmo tempo, valorizar as espécies nativas ornamentais.

 

Arborização deve estar prevista no planejamento das cidades

Arborização contribui para que o solo consiga cumprir suas funções na área urbana

 

A diretora do Núcleo Paranaense da Ciência do Solo (Nepar), Nilvania de Mello, que é professora do Curso de Agronomia na Universidade Tecnológica Federal do Paraná, em Pato Branco, lembra que a vegetação é fundamental para auxiliar o solo a desempenhar melhor suas funções e ajudar na manutenção dos processos básicos do ciclo hidrológico.“Isto significa que quando o solo está bem vegetado, além da cobertura vegetal, o solo apresenta uma melhor estrutura física devido ao alto teor de matéria orgânica, melhorando assim o processo de infiltração de água no solo”, explica Nilvania.

A professora entende que a arborização deve estar prevista no planejamento das cidades, inclusive como elemento arquitetônico e de embelezamento da paisagem e, especialmente, para que solo consiga cumprir suas funções na área urbana. As consequências da falta de planejamento são hoje um dos principais problemas na relação entre solo e vegetação urbana.

“Muitas vezes vemos a utilização de espécies exóticas, ou mesmo nativas, porém, com um sistema radicular tabular, inadequado para área urbana. Essas espécies vão cumprir seu papel em equilíbrio com o solo, mas elas podem trazer problemas de mobilidade, reduzindo a possibilidade de circulação numa praça ou calçada”, pontua Nilvania.

Outra comparação que a professora faz é com as espécies que produzem muito pólen e que consequentemente podem causar alergia. “Quando falamos em planejamento, precisamos pensar em todos esses aspectos”, acrescenta, lembrando que, em todo município com mais de 20 mil habitantes, é obrigado a ter o Plano Diretor, que visa orientar a ocupação do solo urbano.

 

Solos urbanos e seu papel de sustentação de construção civil

Desmatamento de encostas e construções em áreas irregulares normalmente resultam em tragédias.

 

Cada vez mais comuns na área urbana, os desabamentos ou deslizamentos de terra ocorrem tanto em ambientes naturais quanto em locais de interferência antrópica. As principais causas estão ligadas a fatores naturais, condicionados pelas fortes chuvas e pelas características do solo e do relevo e, também, por fatores antrópicos, entre os quais estão o desmatamento de encostas e as construções em áreas irregulares.

“Um talude pode, por exemplo, se tornar instável quando as ações mobilizadas na massa de solo atingem a resistência ao cisalhamento oferecida pelo solo”, explica a professora Nelci Helena Maia Gutierrez, da Área de Geotecnia do Centro de Tecnologia da Universidade Estadual de Maringá (UEM).

Segundo a professora, em regiões de clima tropical, como é o caso do Brasil, o solo se encontra normalmente numa condição não saturada, com grau de saturação muito aquém de 70%. “Em períodos chuvosos, os deslizamentos ocorrem frequentemente em áreas de relevo acidentado, onde a cobertura vegetal original foi retirada, favorecendo a entrada de água no solo e a percolação pelo maciço”, diz.

Isso porque a urbanização amplia a cobertura asfáltica e de concreto e, assim, dificulta a infiltração natural das águas pluviais nos solos. “A quantidade insuficiente de bueiros para a drenagem das águas pluviais ou o seu bloqueio devido ao acúmulo de lixo, em conjunto com a impermeabilização dos solos, em períodos de chuvas intensas típicas do verão, dão origem aos alagamentos, considerados como uma das principais causas dos desastres naturais em solos urbanos”, afirma a professora.

A prevenção ou redução da ocorrência de desastres naturais incluem: a urbanização ordenada, com um adequado planejamento, evitando o desmatamento e a execução de construções nas encostas de morros e serras, quando existentes; a conscientização da população quanto aos hábitos corretos de descarte de lixos e dejetos, aliado a um sistema de drenagem eficiente para captação e condução das águas pluviais, visando impedir a concentração de grandes volumes de água; e a elaboração de projetos e execução de fundações e contenções adequados, com acompanhamento de profissional habilitado e qualificado, e com atenção especial aos solos susceptíveis ao colapso estrutural.

Nelci Helena ressalta que, em função do sistema de drenagem, as cidades geralmente são implantadas em regiões de topo e, em se tratando de zonas tropicais, o solo desempenha um papel relevante, pois frequentemente se apresenta na parte superior do perfil do subsolo, podendo atingir grandes profundidades e servir de apoio às fundações.

 

Agricultura urbana contribui para segurança alimentar

Visita à Fazenda Urbana, centro de conexão entre o rural e o urbano, em Curitiba.

 

A prática da agricultura urbana, que compreende a produção de alimentos e conservação dos recursos naturais dentro dos centros urbanos ou em suas respectivas periferias, surge como estratégia efetiva de fornecimento de alimentos, além de contribuir para a segurança alimentar e garantir a sustentabilidade dos sistemas, a preservação da biodiversidade e a restauração de áreas degradadas.

Esse conceito também chamado de Agricultura Urbana e Periurbana (AUP) vem sendo desenvolvido mais intensamente de 1990 para cá, promovendo mudanças benéficas na estrutura social, econômica e ambiental do local onde ela se instala.

“A agricultura urbana e periurbana pode trazer múltiplos benefícios para o desenvolvimento urbano sustentável e contribuir com a qualidade de vida dos moradores das cidades, ajudando a promover a segurança alimentar e nutricional, além disso, destacamos aspectos sociais, como o convívio entre os moradores de uma região, com atividades comunitárias, a inclusão social de grupos minorizados e as diversas funções ambientais”, afirma Carolina Schuchovski, professora substituta do Departamento de Solos e Engenharia Agrícola da Universidade Federal do Paraná (UFPR).

 

Agricultura urbana surge como estratégia efetiva de fornecimento de alimentos, além de garantir a sustentabilidade dos sistemas.

 

Recentemente, a professora ministrou aulas no Curso de Extensão Universitária em Hortas Urbanas pela Universidade Federal do Paraná, destinado a alunos de graduação e pós-graduação dos cursos de Agronomia, Agroflorestal, Biologia, Zootecnia e Geografia de diversas universidades.

A iniciativa é da Secretaria Municipal de Educação e da Secretaria Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional de Curitiba. “O município viu a necessidade de começar a desenvolver alunos técnicos que fossem capazes de auxiliar com consultoria as hortas. O município tem fornecido mudas, mas precisa disseminar esse conhecimento à comunidade”, complementa Carolina.

“Durante o curso, trouxemos uma ideia geral aos alunos, no sentido de despertar o interesse deles para diversas áreas que envolvem esse tema tão amplo, tais como as mudanças climáticas, segurança alimentar, geração de empregos, respeito a natureza, manejo agroecológico, entre tantos outros”.

Só para ter ideia, Curitiba tem em torno de 140 hortas comunitárias cadastradas pela Secretaria Municipal de Segurança Alimentar e Nutricional. Algumas delas na faixa de domínio da rede de transmissão de energia, onde antes era mata.

Durante a pandemia, em junho de 2020, foi inaugurada a Fazenda Urbana de Curitiba, vinculada à Prefeitura Municipal. É um espaço inédito voltado à educação para a prática agrícola sustentável nas cidades e funciona como um centro de conexão entre o rural e o urbano, para transmitir inovação, conhecimentos tradicionais, agrícolas, gastronômicos e de sustentabilidade urbana.

A fazenda está localizada no bairro Cajuru, ao lado do Mercado Regional. Da sua programação constam também visitas guiadas ou livres, gratuitas e abertas, cursos de capacitações a todo público interessado.

 

Processo educativo desperta sentimento de valorização do solo urbano

Grande parte dos solos das cidades está coberta por asfalto e calçadas.

 

O professor Marcelo Ricardo de Lima e a doutoranda Selma Barbosa Bastos, do Departamento de Solos e Engenharia Agrícola da Universidade Federal do Paraná, entendem que muitos problemas ambientais na paisagem urbana derivam de “nossa falta de percepção de que estes elementos naturais continuam existindo, contudo bastante antropizados, ou seja, alterados pela ação humana”. Os professores são autores da cartilha “O solo na paisagem urbana – uma abordagem para professores da Educação Básica”, lançada em 2020.

Para fazer com que os alunos reflitam sobre o solo urbano, o professor faz uma comparação. “Usualmente faço uma analogia na qual fazemos de conta que moramos em um shopping center, onde tudo é controlado, como o chão onde pisamos, a temperatura, a iluminação e até as plantas são de plástico. Contudo, na paisagem urbana continuam existindo solo, ar, fauna, flora, recursos hídricos e bacia hidrográfica”, compara o professor Marcelo.

“Entendo que a partir do momento em que o cidadão passa a perceber os elementos naturais em sua paisagem urbana, da maneira como tratamos estes componentes, e os riscos de degradá-los, ele passa a ter uma percepção mais ampla dos impactos que ele mesmo e seus vizinhos causam no seu próprio dia a dia”, acrescenta o professor.

A cartilha surgiu da percepção de que o solo, na Educação Básica, geralmente é abordado com o enfoque na paisagem rural. “Desta forma, a maioria dos alunos, que estuda neste nível educacional, não consegue perceber que o solo também está na paisagem onde vivem cotidianamente”, explica.

O professor Marcelo observa que, além das modificações de seus atributos naturais, grande parte dos solos das cidades está coberta por asfalto e calçadas, o que, do ponto de vista visual, acaba omitindo sua presença na paisagem.

A pesquisadora Selma observa que a Educação em Solos, enquanto processo educativo, tem a finalidade de formar e transformar sujeitos para ações conscientes com os solos, seja no espaço urbano ou rural.

Segundo Selma, no ambiente escolar, a importância e o valor dos solos urbanos devem ser trabalhados através de ações de Educação em Solos, as quais devem possibilitar aos estudantes a construção do conhecimento sobre funções, características, importância, principais modificações, conservação e consequências da degradação dos solos da cidade.

“Para isso, o(a) professor(a) deve ter uma formação adequada sobre a temática e fazer o uso de diversas estratégias didáticas capazes de possibilitar a construção da consciência crítica pelos estudantes, tais como aula de campo, construção de horta na escola, maquetes e experimentos didáticos”, explica.

“Por meio da Educação em Solos é possível construir e reconstruir conhecimento sobre solos, além de possibilitar aos habitantes das cidades o desenvolvimento dos sentimentos de valorização, cuidado e respeito com os solos urbanos”, afirma a pesquisadora. Ela acrescenta que é necessário que os professores entendam que a formação é um processo que ocorre ao longo da vida e, nesse sentido, eles deverão buscar formação continuada sobre a temática.

Neste sentido, o Curso de Solos para Professores do Ensino Fundamental e Médio, ofertado pelo Programa de Extensão Universitária Solo na Escola da UFPR, coordenado pelo professor Marcelo, tem contribuído com a formação de professores no contexto dos solos urbanos.

“É uma iniciativa que pode servir como exemplo para outros contextos e realidades. Entendo que é papel dos cientistas do solo e dos educadores em solos contribuir para a educação em solos urbanos a partir de ações extensionistas, publicações científicas, produção e divulgação de recursos didáticos, e ações na vida cotidiana. A educação é um processo transformador, e só a partir dela é possível conhecer, valorizar e conservar os solos urbanos”, afirma Selma.

 

Créditos

Fotos: arquivo das professoras Carolina Schuchovski e Nelci Helena Maia Gutierrez
Banco de Imagens/ Pixabay
Texto: VBComunicação